segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

O passageiro do fim do dia

Sem divisões, sem capítulos. Uma escrita contínua e ininterrupta que, à primeira vista pode assustar e desanimar, mas que ao se aventurar descobrimos ser uma leitura de um fôlego só. É assim O passageiro do fim dia, romance de ficção do escritor e tradutor Rubens Figueiredo, publicado pela Companhia das Letras, que foi vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2011 na categoria Melhor Livro do Ano, e do Prêmio Portugal Telecom no mesmo ano.

O romance se constitui em um percurso, literal e filosoficamente falando. É sexta-feira, fim do expediente. O jovem Pedro, protagonista do livro, sai do trabalho e segue em direção à casa da namorada Rosane, no distante bairro pobre do Tirol, onde costuma passar o final de semana. A história se desenvolve nessa viagem: no ponto do ônibus, enquanto Pedro espera o coletivo, a chegada deste, passando pelo (longo) trajeto até o desembarque. Enquanto isso...

... A sombra da fila, estendida quase ao máximo sobre a calçada, era a única sombra. A demora do ônibus, o bafo de urina e de lixo, a calçada feita de buracos e poças, o asfalto ardente com borrões azuis de óleo, quase a ponto de fumegar – Pedro já estava até habituado. Não são os mimados, mas sim os adaptados que vão sobreviver.

O que se tem são impressões de um jovem extremamente observador e imaginativo, frente a um sistema público de transporte precário e um trânsito caótico. Para aliviar as tensões, Pedro carrega em sua mochila o radinho e fone de ouvido e um livro sobre Darwin, que lê e reflete durante a viagem. Em outras ocasiões, observa os passageiros lembra da namorada e de sua história no Tirol e repara na vida que se apresenta nas ruas, vista fugazmente pelas janelas do ônibus:

Nos vultos espaçosos de crianças, adolescentes ou adultos em volta do fogo em seus movimentos vagarosos, sem atenção sem propósito, mas insistentes, como se não conseguissem afastar-se dali, Pedro começou a notar os traços de uma espécie de culto noturno ancestral. Traços de uma adoração espontânea e desinteressada. Coisa rápida, a mais simples possível, sem alcance além daqueles minutos e daqueles poucos metros. Tratava-se, quem sabe, de uma espécie de identificação, de uma assimilação momentânea, entre eles e o fogo.
Em O passageiro do fim do dia Rubens Figueiredo encanta com alta literatura, mas só àqueles que não conhecem sua trajetória. Conheci ele como tradutor, vendo seu nome em inúmeras obras russas, como Guerra e Paz, Ana Karênina ou Kachtanka, entre outras, para depois vislumbrar seus trabalhos como escritor consagrado, tenho já ganho dois prêmios Jabuti. E cheguei a vê-lo pessoalmente, em Paraty (RJ), onde pude observar sua timidez, mas me encantar com suas colocações e gentilezas. 

Li o livro em 2013 e lembrei dele por ocasião do aniversário de São Paulo, neste ano, em razão das dificuldades de transporte coletivo e do caos do trânsito, típicos de cidade grande. Fica a dica de um escritor indispensável.

(Publicado originalmente em 14/4/2013 em http://cubo3.com.br/2013/04/14/o-passageiro-do-fim-do-dia/)

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