terça-feira, 24 de setembro de 2013

Meus pecados literários

Em agosto fiz um post sobre minhas doenças literárias ( veja aqui ) e prometi que em breve escreveria outro sobre os meus pecados literários, com base nos 7 Pecados Capitais. Chegou a hora.
 
Antes de tudo, vale a pena lembrar que a noção de pecado está vinculada à questão religiosa, principalmente no cristianismo, na igreja católica. Alguns são perdoáveis, caso haja arrependimento, não precisando ser confessados. Outros, os chamados “capitais”, necessitam de confissão, arrependimento e penitência.
 
Considerados vícios de conduta, os pecados capitais foram reunidos e organizados no século VI pelo papa Gregório Magno, mas foi no século XIII, com o teólogo São Tomas de Aquino, que eles foram definitivamente estabelecidos e incorporados. São eles:
 
Gula: busca constante e incontrolável por comida e bebida.
Avareza: apego excessivo e descontrolado pelos bens materiais.
Ira: intenso e descontrolado sentimento de raiva, ódio, rancor.
Luxúria: apego e o desejo desgovernado por prazeres carnais.
Inveja: desejo exagerado por posses, status, habilidades de outra pessoa.
Preguiça: aversão ao trabalho, desleixo, moleza.
Soberba (ou orgulho): arrogância, caracterizada pela falta de humildade.
 
Com base neles e em uma tag que circula pelos canais da internet, fiz minha listinha de Pecados Literários que, cá entre nós, são todos perdoáveis, sem maldade e não prejudicam ninguém:
 
Gula - Que livro você devorou sem vergonha alguma?
Harry Potter e o enigma do príncipe, de J. K. Rowling. Além de ser fascinante, de dar sequência à saga, que amo, precisava terminar o livro rapidinho para devolvê-lo à pessoa que me emprestou (na época que li não tinha o livro). Então fiz uma verdadeira montagem de guerra, lendo no tempo que tivesse disponível e não disponível, seja almoçando, no metrô, no trabalho, na cama, etc, etc.
 
Avareza - Qual é seu livro mais caro? E o menos caro?
O livro pelo qual paguei um preço alto é Sandman – a casa de bonecas, de Neil Gaiman. Impensáveis R$ 180,00. O livro está fora de catálogo e só vez por outra aparece no “mercado negro”. Com dó, mas sem piedade, arrematei.
Já o livro mais barato foi Como Te Leio? Como-te Livro?, de Marcia Grossman. Se não me engano foi R$ 5,00, em um sebo. Um livro delicioso sobre livros, como são feitos e suas diferentes culturas.
 
Ira - Com qual autor você tem uma relação de amor e ódio?
Jane Austen. Li três livros da autora: Razão e sentimento, Emma e Orgulho e preconceito. Gostei dos livros, mas não com aquela paixão que demais leitores costumam se referir aos textos da autora. Há algo que me incomoda na sua escrita, é como se todas as histórias se parecessem, sempre centradas na temática da busca pelo casamento. É um romance de época, certo, mas a recorrência ao tema me incomoda, não me acrescentando muita coisa.
Mas eu não desisti de Jane Austen. Agora quero ler Persuasão.
 
Luxúria - Quais atributos você acha mais atraentes em personagens masculinos e femininos?
É muito difícil de determinar, por isso prefiro falar de alguns personagens que gostei, tanto masculinos quanto femininos. Acho que eles trazem uma síntese dos atributos que gosto e acho fascinantes.
 
Masculinos: Aquiles, o herói grego de A Ilíada, de Homero, com sua valentia, coragem e perseverança; Salomão, o elefante resistente e generoso de A viagem do elefante, de José Saramago; Juca Mulato, o caboclo do mato que tem um amor platônico e poético pela filha da patroa, do livro de mesmo nome, de Menotti Del Picchia; Brás Cubas, o defunto-autor que narra sua história em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis; Neville Longbottom, o bruxinho tímido e medroso da série Harry Potter de J. K. Rowling, e que se transforma no decorrer da saga; Capitão Vitorino Carneiro da Cunha, um dos personagens centrais de Fogo Morto, de José Lins do Rego, uma espécie de Dom Quixote, ingênuo, destemido e decidido a transformar o mundo.
 
Femininos: Úrsula Iguarán, a matriarca de fibra de Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Marquez, pela sua força, sabedoria e determinação; Hermione Granger, da saga Harry Potter, pela sua inteligência, companheirismo e solidariedade; Raquel, de A bolsa amarela, de Lygia Bojunga, uma menina que não abandona seus sonhos, de muita imaginação e que cresce no decorrer da trama; Holly Golightly, de Bonequinha de luxo, de Truman Capote, com sua beleza, leveza, mistério e generosidade.
 
Inveja - Que livros você gostaria de receber de presente?
Essa é fácil, embora tenha muitos em vista, arrisco em dizer quadrinhos, que são caros... E, claro, Sandman – Prelúdios e noturnos, que falta para completar a minha coleção de Sandman.
 
Preguiça - Qual livro você tem negligenciado devido à preguiça?
Ulysses, de James Joyce, com certeza. Além de ter quase 1.000 páginas, a complexidade da obra é um desafio e tanto, que estou protelando, protelando, protelando... mas eu chego lá.
 
Orgulho - Que livro tem mais orgulho de ter lido?
Joyce é mesmo um desafio para mim, por isso, ter lido Retrato do artista quando jovem foi um orgulho. Senti muita satisfação em ter lido e terminado o livro, um bom começo para sua obra, que me levará até Ulysses.
 
Ainda gostaria de citar As correções, de Jonathan Franzen, um romance e tanto de quase 600 páginas. Li em duas etapas e ao final senti que acabara de terminar um livraço.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

E começa o Paulicéia Literária...

A partir desta quinta-feira, dia 19, São Paulo vai exalar literatura por todos os seus poros. Além dos habituais eventos que ocorrem na cidade semanalmente, a capital paulistana abrigará, pela primeira vez, um festival internacional de literatura de grande porte: o Paulicéia Literária, que acontecerá de 19 a 22 de setembro, na AASP - Associação dos Advogados de São Paulo (rua Álvares Penteado, 151 - Centro).
 
O evento, uma iniciativa da AASP, faz parte da comemoração dos 70 anos da entidade, e foi criado com a proposta de inserir um padrão de excelência na agenda cultural da cidade. Serão 18 mesas, com 33 autores, sendo 23 brasileiros e dez estrangeiros que debaterão uma série de assuntos ligados à literatura, Direito, ficção policial, cinema, poesia, entre outros temas.
Para esta primeira edição, o Pauliceia Literária homenageia a escritora, dramaturga e roteirista Patrícia Melo. Autora de nove livros, traduzidos em 12 idiomas, quatro peças de teatro e dois roteiros para cinema, Patrícia teve seu nome incluído, em 1999, pela Time Magazine, entre os 50 líderes latino-americanos do novo milênio.
Ela participará da mesa de abertura do evento, que terá como tema uma análise de sua obra, e de um debate sobre o processo de escrita. Entre suas obras destacam-se Acqua Toffana, O matador – vencedor do Prêmio Deux Océans e Deutsch Krimi, Elogio da mentira, Inferno – vencedor do Prêmio Jabuti, Valsa Negra, Mundo perdido e Jonas e o copromanta.
Ainda não tinha lido nada da autora, até que me deparei com Ladrão de cadáveres, seu oitavo romance, e me surpreendi bastante com sua escrita ágil e envolvente para contar uma história que reúne ética e moral, com suas distorções e justificativas.
A trama se passa em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, onde o narrador-protagonista do romance, um ex-supervisor de uma central de telemarketing em São Paulo, passou a morar depois que foi demitido por ter agredido uma funcionária que acabou se suicidando. Ali, ele passa a viver sem cobranças e grandes aspirações, até que sua vida toma um rumo inesperado ao presenciar a queda de um avião no rio Paraguai.
Ao se aproximar do aeroplano, para tentar auxiliar o piloto, o narrador percebe que ele está morto. Ao seu lado, vê uma mochila e, dentro dela, um pacote de cocaína. Ele deixa o corpo no local e leva a mochila, dando início a uma série de desdobramentos que vai aflorar o pior lado que existe nas pessoas. A princípio, o protagonista não sabe o que fazer, mas os acontecimentos o vão moldando – e conduzindo – de tal forma que ele não consegue mais escapar. A passagem a seguir é exemplar para justificar seus atos:
... O que importava se eu abandonara o cadáver no rio? Não matei ninguém, câmbio. Ainda que tivesse arrancado o rapaz do avião e o carregado no lombo até a cidade, nada iria mudar. Estaria morto do mesmo jeito. Todos vamos morrer um dia. Que importava se eu tinha afanado a cocaína? Que atire a primeira pedra, câmbio. Todos nós roubamos alguma coisa, em algum momento. Quase todos. Pelo menos uma vez. Ou vamos roubar. O Brasil é cheio de gente escrota, essa é a verdade.
A trama envolve ainda a namorada, Sulamita, uma policial honesta que é transferida para o necrotério local e também é testada em seu lado “mau”; os pais do piloto morto, ricos e tradicionais, que vivem a angústia de não encontrar o corpo do filho e, por isso, têm a esperança de que ele esteja vivo; e uma família de índios, cujo pai apresenta os traficantes de drogas ao protagonista. Pessoas diferentes, mas ligadas por um mesmo fio, como em uma teia de aranha gigante que vai tecendo e enredando o destino de cada um.
Os conflitos de consciência do protagonista, ainda que verdadeiros, não são o suficiente para afastá-lo do caminho traçado. Por isso, ao ir ao encontro da família do piloto para dizer-lhes que ele está morto, uma série de mal-entendidos o faz se empregar como motorista da casa. É interessante ainda a semelhança da angústia dos pais do piloto com a história do protagonista, que teve o pai desaparecido, sem saber se fora morto ou não. As lembranças ao fato são recorrentes no livro e questionadas a todo o momento:
Pensei no quanto minha própria mãe teria sido feliz se um dia alguém tivesse nos telefonado do necrotério, se tivéssemos ido até lá, reconhecido o cadáver do meu pai, para depois enterrá-lo e acabar com o assunto. É esse o significado da palavra enterrar. Colocar ponto final. Enterrem os mortos e cuidem dos vivos, quem disse isso? Enquanto não enterramos os mortos, os vivos ficam lá, sangrando. Acabam conosco os mortos. Como a dona Lu. Eu havia notado que nos últimos dias, ela não se importava mais em encontrar o filho vivo. O cadáver do filho já bastava. Estava naquele ponto em que o cadáver era melhor que nada. Antes o cadáver. Era assim mesmo que as coisas se davam. Eu sabia disso por experiência própria, há momentos que até uma péssima notícia é bem-vinda. Achamos um braço. Um pedaço do crânio. Achamos o assassino. A cova. Qualquer coisa serve.
Essa minha primeira incursão na obra de Patrícia Melo foi bastante prazerosa, despertando a vontade de ler mais livros da autora. Acho que o Paulicéia Literária será uma excelente oportunidade de conhecer mais o seu trabalho e seu processo criativo.
Vale lembrar que no evento a escritora Lygia Fagundes Telles também será homenageada em uma mesa literária, que contará com a presença de Ana Maria Machado, Beatriz Bracher e Luiza Nagib Eluf. Mais do que merecida, afinal, Lygia se formou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, sendo uma das mulheres pioneiras na área jurídica. Uma bela lembrança.
Para saber mais sobre o Paulicéia Literária e conferir a programação completa acesse http://www.pauliceialiteraria.com.br/

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Um sonho de Livraria - a Limítrofe

Todo leitor que se preze já deve ter sonhado, pelo menos uma vez, em encontrar pela frente uma livraria organizada de acordo com suas preferências literárias – ou com obras que te auxiliem em determinados momentos da vida. Mas se na realidade isso ainda não é possível, pelo menos na ficção o leitor pode embarcar nessa aventura. E é exatamente esta a proposta de Livraria Limítrofe – O adeus, de Alfer Medeiros, publicado pelo selo Fantas, da Editora Estronho.
 
O primeiro detalhe que me chamou a atenção – e confesso aqui o meu preconceito – foi à ausência de capa, ou seja, o livro se apresenta na folha de rosto, deixando à mostra a costura e a colagem do miolo. Fiquei desapontada pela fragilidade do exemplar, que poderia facilmente ficar desconjuntado, amarrotado, sujo..., mas ao mesmo tempo fascinada pela inovação da obra que simplesmente amei ter em mãos um livro assim. E, além do mais, gostoso de manusear. (A título de curiosidade, foi lançada também uma edição com capa).
Livraria Limítrofe trata-se de um espaço diferente, que não tem endereço fixo e raramente é encontrada mais de uma vez. Ela surge no momento certo e oferece às pessoas comuns, amantes da leitura, outras nem tanto, o ambiente perfeito para atender suas necessidades. Pode-se dizer que é uma livraria personalizada, em que cada leitor encontrará livros de autores preferidos, acomodados em um ambiente de dimensões grandes ou pequenas, com decoração característica das obras.
Neste primeiro livro – sim, haverá uma continuação prometida para 2013 – ficamos conhecendo a livraria e seu livreiro limítrofe, que irá apresentar o lugar ao seu sucessor, já que irá se aposentar. Aqui a entrevista para ocupar o emprego é um pouco diferente, ao invés do candidato falar de suas características e habilidades, é o livreiro quem irá mostrar o trabalho e suas peculiaridades. É o candidato quem deve ser conquistado, e isso é feito, também, com depoimentos dos leitores que frequentaram a livraria, falando de suas impressões, sustos e descobertas literárias.
Dividido em capítulos para apresentação da livraria e do trabalho, além dos depoimentos dos leitores, a obra traz inúmeras referências literárias, que não são intituladas, apenas sugeridas. Para quem leu determinada obra, a sacada é imediata e muito prazerosa. Já para quem não leu há um grande ponto de interrogação, mas também uma vontade louca de descobrir a que obra se refere. Garanto que para um leitor assíduo, pelo menos boa parte das obras são facilmente reconhecíveis.
Os gostos dos leitores que passaram pela livraria são variados, e aqui não há preconceitos. São obras vão das populares, passando por best sellers até chegar às mais consagradas. Não há preconceito. Tudo é literatura que contribui para a formação do leitor.
Dos depoimentos de leitores apresentados o da mãe que embarca com sua filha em um mundo de fantasia – “Dando à luz” – é um dos mais deliciosos de se ler. É como voltar à infância, em que tudo era permitido e a imaginação corria à solta, facilmente, sem a interferência do mundo adulto.  O capítulo em que a mulher do livreiro dá seu depoimento também merece destaque. Muito tocante. Mostra a importância da literatura na vida de uma pessoa, como construtora da sua trajetória, embora muitas vezes não percebemos isso. Os livros aqui funcionam como um remédio para a alma, um lenitivo para as dores do corpo.
Mas há também depoimentos de pura descontração, como o engraçadíssimo “Visita inusitada”, em que uma mulher entra no lugar de outros leitores na livraria e fica sem saber o que fazer no local, numa sequência de enganos e trapalhadas. Muito legal.
A proposta do autor é interessantíssima, leve e divertida. Alfer Medeiros, codinome de Alexandre J. F. Medeiros, é profissional de TI , pai de família e meu amigo, companheiro dos Clubes de Leitura que frequento. Além de Livraria Limítrofe já participou dos projetos UFO – Contos Não-Identificados, Fúria Lupina Brasil e Asgard – A saga dos nove reinos, Cursed City.
Livraria Limítrofe – O adeus é um desses livros para ler e reler, sempre descobrindo coisas novas. E, cá para nós, ao fechar o livro dá vontade de sair correndo e perambular pelas ruas da cidade. Quem sabe se em uma dessas quebradas a gente não se depare com uma porta em um lugar inusitado que nos leve a um mundo mágico, que só os livros sabem proporcionar?
Agora é aguardar pela continuação – Livraria Limítrofe – Angelina. E que venha logo.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Uma biblioteca infantil multilíngue

Em uma época dominada pela internet, com seu amplo campo de acesso e inúmeros sites de busca que permitem vislumbrar o mundo em tão pouco tempo sem que os internautas, sobretudo crianças e adolescentes, saiam do conforto de seus lares, é de se admirar e aplaudir a criação de uma biblioteca – física – voltada para o público infanto-juvenil: a Biblioteca Infantil Multilíngue do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo.
 


Primeira no gênero da América Latina, ou seja, com livros em diversas línguas para crianças e jovens de até 19 anos, a biblioteca foi inaugurada em agosto deste ano, ao lado da Biblioteca Central do Belas Artes. Trata-se de um espaço planejado para oferecer histórias e linguagem adequadas a cada idade, de forma que a leitura se torne uma atividade prazerosa.
A ideia da criação da biblioteca partiu da jornalista Duda Porto de Souza, uma leitora assídua desde criança. Em 2009 ela começou a angariar doações, como livros, DVDs, revistas, gibis, itens de informática e brinquedos para formar o espaço. A Belas Artes soube da iniciativa e apoiou a proposta, investindo na criação da estrutura para tornar a biblioteca em algo público e acessível.
 
O espaço conta com um acervo de 11 mil exemplares, que vieram em parte da estante de Duda e da colaboração de amigos. Outra parte foi doada por editoras, escritores e interessados em contribuir.  Dessa forma, a biblioteca conta com um acervo infantil público e multimídia, com livros, DVDs, revistas, gibis e informática em diversos idiomas como português, espanhol, japonês, inglês, italiano, francês e alemão.
 
Do acerco destacam-se livros, como o que foi escrito por Barack Obama, Of thee I sing: a letter to my daughters, inspirado em suas filhas; a edição ilustrada do clássico O pequeno príncipe,com aquarelas do autor; um livro escrito em japonês, com introdução à arte de Van Gogh; publicações em braile, como o livro Abraço de urso, entre outros.
A Biblioteca Infantil Multilíngue funciona na Unidade I da instituição, localizada à rua Álvaro Alvim, 90, na Vila Mariana. O horário de funcionamento é de segunda a sexta-feira, das 8h às 19h e aos sábados das 9h às 16h.
 
O local é aberto ao público em geral e pode ser frequentado também por adultos, estudiosos e profissionais com a finalidade de pesquisa. Vale a pena conhecer e circular por entre prateleiras, pufes e móbiles, descobrir tesouros e se deleitar com as leituras.
Para os interessados em fazer doações, os materiais podem ser levados nos horários de funcionamento da biblioteca. São aceitas obras em bom estado de conservação, em todos os idiomas e somente das áreas de literatura, artes e gibis voltados para o público infanto-juvenil. Em caso de grande quantidade, a biblioteca faz a retirada no local.
 
Mais informações, acesse http://www.bibliotecainfantil.com.br/

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

O Edifício - e os meus edifícios

Quando eu era criança adorava passear no centro de São Paulo com meus pais e irmã, fosse para perambular pela feira hippie da Praça da República, fosse para assistir a uma das muitas matinês nos cinemas da capital, ou quem sabe ainda para “vasculhar” os magazines da cidade. E, sempre que possível, passávamos pelo Mappin, tradicional loja de departamentos que comercializava móveis, eletrodomésticos, roupas, discos, produtos de higiene e beleza, enfim, uma infinidade de materiais para o dia a dia e o deleite dos consumidores.
 
A loja atuou por 86 anos em São Paulo e foi uma das pioneiras no comércio varejista. Teve falência decretada em 1999, quando suas atividades foram encerradas. O prédio foi retomado para abrigar o Extra Mappin, mas logo abortado e, em seguida, foi adquirido pelo grupo das Casas Bahia. O tradicional edifício ainda se encontra na Praça Ramos de Azevedo, esquina com a Cel. Xavier de Toledo, bem no coração comercial de São Paulo, mas não tem mais nada que lembre o charme e a imponência daquele magazine que fez parte da história da cidade.
A lembrança do Mappin e de outro edifício presente na minha infância e adolescência – o da Congregação Mariana, no bairro do Pari, que hoje nem mais vestígios têm do prédio, uma vez que este foi demolido para abrigar o campus da Universidade São Francisco – me pegou de cheio ao deparar com a HQ O Edifício, de Will Eisner, um dos nomes mais importantes dos quadrinhos no mundo.
Mestre na arte de desenhar com leveza e sentimento, e de contar histórias do cotidiano urbano, com realismo marcante, Eisner escreveu e desenhou O Edifício em 1987 como uma metáfora da vida, com suas histórias, sua importância e seu declínio até a extinção. Esta constatação já aparece na página de abertura da HQ, com o relato do próprio Eisner:
À medida que fui envelhecendo e acumulando recordações, passei a me sensibilizar mais e mais com o desaparecimento de pessoas e referências urbanas. Para mim, eram especialmente perturbadoras as inexplicáveis demolições de prédios. Eu sentia como se, de alguma forma, eles tivessem alma.
Agora, estou certo de que essas estruturas marcadas por risos e manchadas de lágrimas são mais do que edifícios inertes. É impossível pensar que, ao fazerem parte da vida, não tenham absorvido as radiações provenientes da interação humana.
Eu me pergunto sobre o que resta depois que um prédio é demolido.
O enredo divide-se em quatro personagens, cujas histórias transitam em torno de um edifício que, derrubado, se transforma em outro, mas cujas estruturas guardam as marcas de outras épocas. Esses personagens, que nos são apresentados logo no início como fantasmas diante do novo prédio, tiveram suas vidas e trajetórias pautadas pelo edifício e sucumbiram com ele, de forma a estabelecer uma ligação forte que as acompanhará até o final, até o ressurgimento do novo prédio e, com ele, suas redenções.
A primeira, e mais tocante história, é sobre Monroe Mensh, um cidadão novayorquino, vendedor em uma loja de sapatos, que vive sozinho, sem se envolver com nada e ninguém. Até que sua vida é transformada com a morte de um garoto em um assalto em frente ao edifício, que poderia ter salvado. Dessa forma, ele abandona o emprego e busca se redimir trabalhando em um órgão de amparo infantil estabelecido no próprio prédio, tentando assim ajudar toda e qualquer criança que necessite de auxílio.
Em seguida é apresentada a história de Gilda Green, uma bela mulher que, quando jovem era bastante assediada, mas acabou se apaixonando por um poeta, que não tinha onde cair morto. Depois de formada e, cansada dessa vida, ela se casa com um cirurgião-dentista e passa a levar uma vida confortável, mas sem deixar de manter a antiga paixão. Assim, eles continuam se encontrando, todas as semanas, em frente ao edifício.
O outro personagem é Antonio Tonatti, um violinista que, por ser de família pobre, não teve muita oportunidade de expandir o seu talento. Ele toca esplendidamente, mas precisa ter uma ocupação para sobreviver, passando a tocar nas horas vagas, em frente ao edifício.
Por fim aparece P. J. Hammond, um milionário, cujo pai foi proprietário do edifício, mas acabou por vendê-lo no decorrer da vida, aumentando suas posses e deixando a presidência da empresa ao filho. Obcecado pelo local que marcou sua infância, Hammond faz de tudo para reaver o prédio, nem que para isso tenha de usar métodos nada ortodoxos ou até mesmo perder sua fortuna.
É impossível não se emocionar ao final da leitura, ainda mais ao retomar as histórias e atentar para os detalhes dos desenhos, cuja compreensão se torna maior. Sem dúvida uma bela e tocante HQ do cotidiano urbano, que nos faz pensar na vida, nas relações humanas e nas inúmeras histórias que uma cidade comporta.