sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Vida é sonho... é filme

Borges, Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, Isabel Allende, Roberto Bolaño, Ernesto Sabato, Carlos Fuentes e, claro, Machado de Assis, João Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Jorge Amado, entre outros. Para o nosso conhecimento e deleite, suas vastas obras estão ao nosso alcance, bastando somente que nos aventuremos por elas.
 
Existem, porém, outros autores que, por não terem seus livros – ou pouco deles – traduzidos para o português, embora apresentem uma trajetória considerável em seus países de origem, passam despercebidos pelos brasileiros. Foi o caso do chileno Alejandro Zambra, cujo belíssimo Bonsai foi finalmente publicado no Brasil pela Cosac Naify, conquistando leitores.
Depois de conhecer e me encantar com Zambra, minhas atenções voltaram-se para outro autor chileno, que teve uma de suas obras publicada também pela Cosac Naify: Hernán Rivera Letelier, com seu tocante A contadora de filmes, um livro de pouco mais 100 páginas que fala sobre a importância da imaginação e da ficção na vida das pessoas, em especial das crianças.
 
O projeto gráfico é uma atração à parte: magnífico, com trechos impressos em um retângulo claro em meio ao negrume da página, semelhante a uma tela de cinema projetada em uma sala escura. 
Quanto ao enredo, o livro resgata um tempo em que o poder da palavra era suficiente para conhecer uma história, sem precisar vê-la, com os próprios olhos. E vai avançando com a chegada da modernidade e das mudanças no estilo de vida das pessoas, deixando marcas sentidas naqueles que não acompanham as transformações do mundo.
A narrativa é simples em meio a um cenário árido: o povoado salitreiro do deserto do Atacama, região norte do Chile. Ali, no final da década de 1950, vive uma família pobre e apaixonada por cinema, que aos domingos vai à única sala existente no local. Quando o patriarca sofre um acidente e fica impossibilitado de trabalhar, a situação financeira deles é bastante afetada. A mãe não aguenta a situação, vai embora, deixando marido e cinco filhos.
Para aliviar as mazelas, o cinema é a válvula de escape necessária, mas com a renda reduzida, só um dos integrantes da família poderá assistir aos filmes, tendo a incumbência de, na volta, contar aos demais a história. Nessa tarefa, é a filha mais nova, Maria Margarita, a narradora e protagonista do livro, quem se sai melhor:
Cheguei em casa com os olhos vermelhos. Todos me esperavam com grande expectativa. Tomei em silêncio a xícara de chá, me pus na frente deles, e sem que meus joelhos tremessem nem nada, comecei a minha narração.
Foi então que alguma coisa se apoderou de mim.
Enquanto contava o filme – gesticulando, dando braçadas, mudando a voz – ia como que me desdobrando, transformando, convertendo-me em cada um dos personagens. Naquela tarde fui Ben-Hur, o jovenzinho. Fui Messala, o malvado do filme. Fui as duas mulheres leprosas que Jesus curou.
Fui o mesmíssimo Jesus.
Eu não estava contando o filme, eu estava atuando o filme. Mais ainda: eu estava vivendo o filme.
Meu pai e meus irmãos me ouviam e olhavam para mim de boca aberta.
 
Com boa memória, criatividade e desenvoltura, Maria Margarita torna-se assim “a contadora de filmes” oficial da família e, mais tarde, do povoado, adotando até um novo nome – Fada Docine:
Sem ter pensado nisso, para eles eu tinha me transformado numa fazedora de ilusões. Numa espécie de fada, como dizia a vizinha. Minhas narrações de filmes os tiravam daquele amargo nada que era o deserto, e mesmo que fosse por um instante os transportava a mundos maravilhosos, cheios de amores, sonhos e aventuras. Em vez de vê-los projetados numa tela, em minhas narrações cada um podia imaginar esses mundos ao seu bel prazer.
Porém, à medida que o tempo avança, novos costumes se fazem presentes, a família se transforma, membros partem, outros ficam e tem pouca sorte. Em meio a tudo isso, Maria Margarita não se queixa, não esmorece; aceita sua sina, prossegue com seus sonhos, sempre, até o fim. Talvez porque a vida é um sonho e o sonho é um filme:
Uma vez li uma frase – com certeza de algum autor famoso – que dizia algo assim como a vida está feita da mesma matéria dos sonhos. Eu digo que a vida pode perfeitamente estar feita da mesma matéria dos filmes.
Contar um filme é como contar um sonho.
Contar a vida é como contar um sonho ou contar um filme.
Sobre Letelier vale destacar que ele é natural de Algorta e já publicou mais de dez livros. Este, A contadora de filmes, está sendo adaptado para o cinema pelas mãos do cineasta brasileiro Walter Salles. É aguardar pra ver, enquanto isso, leia o livro.

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