quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Reportagem em quadrinhos

Se me perguntassem, hoje, “onde eu gostaria de estar?”, a minha resposta seria rápida e direta: em Porto Alegre, e isso por uma simples razão: a capital gaúcha abrigará, de 29 de outubro a 15 novembro, a sua 56ª Festa do Livro (http://www.feiradolivro-poa.com.br/), considerada a maior a céu aberto das Américas. E o que é melhor, totalmente gratuita, democrática, plural.

Mas se a feira começa na sexta e segue por mais duas semanas, por que então eu gostaria de estar lá antes? E a minha resposta não poderia ser mais natural do que a outra: para participar do I Encontro Internacional de Jornalismo em Quadrinhos, que começa amanhã e vai até o dia 30 de outubro, como um evento paralelo à Feira do Livro de Porto Alegre, mas que infelizmente não poderei presenciar.

A programação é de primeira (http://www.goethe.de/ins/br/poa/ver/pt6596308v.htm) e terá, entre os convidados, os quadrinistas alemães Atak e Jens Harder. Dos nacionais estarão presentes Aristides Dutra, mestre em Jornalismo em Quadrinhos; Felipe Muanis, jornalista, ilustrador e professor; Gilmar Rodrigues, jornalista; e Spacca, desenhista e escritor de quadrinhos históricos, entre outros.

Já comentei várias vezes aqui minha paixão por quadrinhos, especialmente pelo Jornalismo em Quadrinhos, gênero que tem se destacado nos últimos anos, cujo grande expoente, pelo menos para mim, é o cartunista e jornalista Joe Sacco.

Até conhecer seus trabalhos, em 2001, especialmente Palestina – Uma nação ocupada, e que me inspirou a fazer uma monografia para a pós em Jornalismo Internacional, eu nunca tinha ouvido falar em Jornalismo em Quadrinhos. A descoberta da graphic novel foi uma surpresa bastante agradável e se tornaria um ícone no gênero para mim.

A reportagem em quadrinhos de Sacco foi lançada no Brasil em 2000, com 144 páginas. Sabe-se que durante muito tempo, a abordagem da questão palestina apresentada pelas mídias tradicionais – jornais, revistas, televisão – mostrava apenas um lado do conflito – israelense – em detrimento do outro – palestino. De uma maneira criativa e original, Joe Sacco decidiu, entre 1991-1992, verificar “in loco” a situação e retratar em quadrinhos o dia a dia dos palestinos, mostrando quem são, o que pensam, o que sentem, como vivem. O resultado foi uma excelente reportagem em quadrinhos, primeiramente publicada em uma série de nove revistas e, posteriormente, editada como livro, em dois volumes – o segundo é Palestina – Na faixa de Gaza.

O primeiro volume destaca, entre outros aspectos, o campo de refugiados de Balata, na Cisjordânia, a detenção, o aprisionamento e o interrogatório de palestinos, feitos por autoridades israelenses, e a questão das mulheres palestinas. O conflito não só é explicado historicamente, como traz os fatos no seu cotidiano, com depoimentos e representações do que aconteceu naquela região. O próprio autor se insere no enredo, se retratando como um personagem, ele próprio, um repórter em busca de uma boa reportagem, que vive no meio do povo, ouvindo suas histórias e dando forma estética a elas.

Sacco é da escola do quadrinho underground e formou-se em jornalismo pela Universidade de Oregon. Com Palestina, ele ganhou o American Book Awards e o Prêmio HQ Mix 2000 de melhor graphic novel estrangeira. Palestina foi considerada ainda Melhor Nova Série pelos Harvey Awards (os Óscares na comunidade dos comics) e foi largamente mencionada em publicações como The Utner Reader e Washington City Paper.

É de Sacco, também, as reportagens em quadrinhos Área de Segurança: Gorazde e Uma história de Sarajevo sobre a Guerra da Bósnia. Mais recentemente publicou Notas sobre Gaza, que narra um fato histórico acontecido em 1956, data do assassinato de 275 palestinos em Khan Younis, vila na faixa de Gaza. Este constituiu-se mais num trabalho de historiador. O jornalista assina, ainda, outros trabalhos, sempre mesclando a história com os quadrinhos.

Na verdade, livros em quadrinhos começaram a ter sucesso nos Estados Unidos no início dos anos de 1990, a partir da publicação de Maus, de Art Spiegelman. O livro misturava cenários detalhados e elementos surreais para narrar a saga dos seus pais, que eram judeus, durante a II Guerra. Com seu livro, Spiegelman fez com que o mundo levasse a sério a possibilidade de fazer jornalismo em quadrinhos. Outro exemplo é a obra de Will Eisner, em que uma cidade inteira é desvendada sob ângulos insuspeitados no magnífico New York – The Big City.

Outros quadrinistas, como Keiji Nakazawa, também seguem pela mesma linha, com o tocante Gen – Pés Descalços – Uma história de Hiroshima. A obra é autobiográfica e foi lançada em quatro volumes. Trata-se da história do autor crescendo em uma família pacifista durante a Segunda Guerra e enfrentando a devastação física e espiritual causada pelo homem. Eletrizante e emocionante, a série tornou-se um dos maiores clássicos da narrativa sequencial japonesa, com mais de cinco milhões de exemplares vendidos e versões para cinema, desenho animado e até mesmo uma ópera.

Todos esses trabalho, outros que não citei – como O Fotógrafo, de Didier Lefèvre, que misturam fotos e quadrinhos, sobre a guerra do Afeganistão – e os que ainda estão por vir confirmam a possibilidade de unir duas linguagens tão diferentes como a do jornalismo e a do quadrinhos. Sobre isso, o jornalista José Arbex Jr, que foi meu professor na pós e assina o prefácio de Palestina – Uma nação ocupada, dá o veredicto certeiro:

... A notícia se nunca foi um “relato objetivo”, até porque, não existe a “linguagem objetiva”, hoje funciona apenas como uma peça de legitimação de determinada ordem ou percepção do mundo. Ela é um ingrediente do “grande show” transmitido diariamente pelos oligopólios da comunicação. Ao diluir as fronteiras entre os gêneros, ao tratar o mundo como show e o show como notícia, a mídia permitiu, em contrapartida, que outras linguagens, como a dos quadrinhos, reivindicasse para si o estatuto do jornalismo. E aí se resolve o impasse aparente.

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