sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Criador e criatura

Na história da humanidade, o mito da criação e o consequente desejo de se igualar ao Criador sempre permearam os pensamentos do homem. Já nos primórdios, a narrativa bíblica no Gênesis fala da construção de uma torre, cujo objetivo era fazer com que o cume chegasse ao céu para não se espalharem pela Terra. Diante dessa “ousadia”, Deus confundiu a linguagem dos seus “construtores” fazendo-os parar em seu projeto. O episódio ficou conhecido como Torre de Babel, ou seja uma mistura confusa de várias línguas faladas ao mesmo tempo.

Na era moderna, a fertilização “in vitro” e, mais recentemente, a clonagem de seres vivos têm ampliado a possibilidade do homem de se tornar criador da vida humana. Será que isso, um dia, acontecerá de fato? Bom, ao menos na ficção essa probabilidade muitas vezes nem mais é questionada, tendo em vista sua concretude na literatura.

No romance de ficção científica, O caçador de androides, do escritor norte-americano Philp K. Dick, e adaptado esplendorosamente para o cinema, sob a direção de Ridley Scott, narra a história de Rick Deckard, um caçador de recompensas profissional numa Terra futurista no ano de 2021. Ele tem a missão de procurar e retirar do planeta um grupo de androides de última geração (seres-robôs de aparência humana, que reproduzem os movimentos do corpo humano), rebelados em busca de uma vida livre da servidão aos humanos.

Uma das cenas de maior impacto, para mim, é quando o replicante Roy Batter, o líder da revolta, já sentindo suas forças minarem e seu tempo na terra chegar ao fim, se depara com seu criador, Tyrell, e suplica:
– Quero mais vida, pai!

É o limite da criatura ao esbarrar com seu final iminente, por isso clama por mais tempo. Ele, embora feito à imagem e semelhança do criador, o mais perfeito que se possa conseguir fazer, não consegue chegar à "imortalidade" do seu criador (ainda que este também seja mortal) e, assim, a uma vida eterna.

O mesmo embate entre criador e criatura temos em Frankenstein, da escritora britânica Mary Shelley, o romance de terror gótico, que conta a história de Victor Frankenstein, um estudante de ciências naturais que, obcecado pela imortalidade, constrói um ser, mas acaba se arrependendo em razão da criatura se assemelhar a um monstro, de estatura gigantesca e com várias marcas de cirurgias ao qual foi submetido pelo criador. Ao abandonar sua criatura, Frankenstein foge à sua responsabilidade para com o ser criado. Este, largado à própria sorte, acaba se transformando num ser verdadeiramente monstruoso.

Mais recentemente, essa mesma questão se apresentou à minha frente quando da leitura de Coração de Tinta, literatura infantojuvenil da escritora alemã Cornelia Funke. A história gira em torno do encadernador Mo, cuja habilidade é dar vida aos personagens dos livros quando lido em voz alta. Mas, ao fazer isso, acabou colocando sua vida e a vida da esposa e da filha, Meggie, em perigo, por causa do vilão sanguinário, Capricórnio, que saiu da obra Coração de Tinta. A intenção do bandido é fazer com que Mo traga do livro um malvado ainda mais terrível que ele.

Vilanias à parte, a história é bastante interessante e constitui-se numa verdadeira declaração de amor aos livros, já que o objeto principal do romance é o próprio livro, com diversas citações a ele. Mas o legal é a parte em que Fenoglio, criador de Coração de Tinta e de seus personagens, encontra sua criatura, frente a frente.

“– Por todas as letras do alfabeto! – sussurrou Fenoglio quando andava junto com Meggie pela nave central da igreja, com Basta em seus calcanhares. – Ele é exatamente como eu o imaginei. ‘Pálido como um copo de leite’, sim, acho que foram essas as palavras que usei.
Ele começou a andar mais depressa, como se não aguentasse esperar para ver de perto sua criatura...
... Fenoglio não desgrudava os olhos de Capricórnio por um só instante. Ele o observava como um artista que, depois de longos anos, revê um quadro que pintou. E, a julgar pela expressão do seu rosto, estava gostando do que via. Meggie não conseguia ver nenhum vestígio de medo em seus olhos, apenas uma curiosidade quase incrédula e satisfação, satisfação consigo mesmo. Capricórnio não gostou desse olhar, como Meggie também notou. Ele não estava acostumado a ser encarado tão destemidamente, como fazia o velho escritor.
– Basta me contou algumas coisas estranhas a seu respeito, senhor...
– Fenoglio.
Meggie observou o rosto de Capricórnio. Ele teria lido alguma vez o nome que ficava na capa de
Coração de Tinta, logo embaixo do título?
– Até mesmo a voz dele é como imaginei! Fenoglio sussurrou para Meggie.
Ele parecia encantado como uma criança diante da jaula do leão.”

Esses três momentos na literatura que tratam da dualidade entre criador e criatura (há bem mais) são extremamente fascinantes e nos faz refletir nessa questão. O primeiro coloca em xeque a limitação da vida da criatura, clamando ao criador mais tempo de existência, como se isso fosse possível; o segundo é o horror do criador diante do ser criado e seu propósito de abandono a fim de eximir da responsabilidade para com a criatura; e o terceiro é o momento do êxtase, quando o criador se vê maravilhado com a obra criada, reproduzida exatamente como ele idealizou.

Na ficção tudo é possível e é legal que isso aconteça, mas ao fecharmos as páginas dos livros, retomamos ao nosso real e sabemos que a lógica não é tão simples assim. Isso me faz lembrar uma frase do saudoso jornalista e radialista Hélio Ribeiro, em seu livro O Poder da Mensagem, que diz mais ou menos assim:

“O grande sofrimento do criador: tirar tudo de um nada qualquer, e depois ser julgado por qualquer um que nem com todos os tudos do mundo seria capaz de fazer um simples quase.”
Acho que não é preciso dizer mais nada.

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